LEITURA - Sonho em gotas

"As Miniaturas", romance de Andréa Del Fuego, flerta com o onírico para evidenciar a realidade
Renato Parada/Divulgação
Autora de quatro volumes de contos e livros infantojuvenis, Andréa Del Fuego recebeu o prêmio Saramago de literatura por "Os Malaquias" (Língua Geral, 2010)
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O sujeito vai ao médico cuidar do coração, vai ao psicólogo cuidar da mente, vai à academia cuidar do corpo, vai à igreja cuidar da alma, vai ao cabeleireiro cuidar do cabelo, vai ao mecânico cuidar do carro, vai ao veterinário cuidar do cachorro e também vai ao oneiro cuidar dos sonhos. 

Tudo na mais perfeita normalidade. Menos o oneiro, que ainda não está disponível. Pelo menos no mundo real de carne, osso, carro e cachorro. Mas existe no novo livro da escritora paulista Andréa Del Fuego, "As Miniaturas", lançada pela editora Companhia das Letras. 

Oneiro (termo criado pela autora derivada da palavra onírico) é o profissional que auxilia as pessoas a sonharem durante as noites mal dormidas - pessoas que não conseguem sonhar ou perderam tal faculdade. O trabalho do oneiro não é complicado, ele se coloca diante do paciente dormindo e, através de palavras e miniaturas de todo tipo de coisa, induz a pessoa a criar associações e gerar sonhos. 

"As Miniaturas" narra a história de um oneiro que trabalha numa grande corporação geradora de sonhos. Milhares de pacientes frequentam a sede da empresa em busca de um pouquinho de viagem onírica. O lugar é repleto de regras, normas, procedimentos, hierarquias, salas, corredores, escadas e elevadores inspirados no universo criado pelo escritor checo Franz Kafka (1883 – 1924). 

Esse oneiro teria uma existência de funcionário normal se não acontecesse algo vedado a esses profissionais: apegar-se aos pacientes. No caso, apagar-se a uma mãe e a seu filho que frequentam, separadamente, as sessões de sonhos. O romance é narrado por essas três vozes, a do oneiro, a da mãe e do filho. 

A mãe é uma taxista que vive com o filho adolescente. Abandonada pelo marido, batalha a sobrevivência correndo pelo trânsito da metrópole. O filho, típico garoto de 16 anos, luta para não aceitar o emprego que a mãe arrumou para ele como frentista do posto de gasolina gerenciado pelo amante da mãe. 

As três vozes formam narrativas paralelas que se completam ao redor da história. Apesar do potencial onírico do argumento, Andréa Del Fuego optou por construir uma romance racional através de ideias. Não há abordagens sentimentais. Não há delírios mágicos, não há imaginação desenfreada. A proximidade com o onírico é apenas um flerte. Está na incapacidade onírica do sujeito imerso na massa. 

Os três personagens se revelam deter mundos interiores desprovidos de riquezas. Os sonhos estão completamente desvinculados de suas vidas. Parecem acessórios desprovidos de sentido. A impressão que fica é de que a escritora tinha nas mãos uma ideia de grande potencial que foi, por opção, diluída em gotas. 

"As Miniaturas" é uma literária pautada pela ideia do sonho e desprovida de sonhos. Um romance que ludibria. Os personagens não penetram um único centímetro no onírico, seus pés sempre estão fincados na vigília, no real imediato, no cotidiano básico, vil e trivial. O mundo e a vida se apresentam sobre uma superfície rasteira. As aspirações descambam para o empreendedorismo do lendário jeitinho brasileiro de sobrevivência, da mão para a boca. 

É uma obra completamente diferente do romance anterior de Andréa Del Fuego, "Os Malaquias" (Língua Geral, 2010) que recebeu o prêmio Saramago de literatura. Pelo bem ou pelo mal, Del Fuego se revela uma escritora mutante. Nascida em 1975 em São Paulo, publicou quatro volumes de contos e vários livros infantojuvenis. Seus contos estão presentes em 17 antologias lançadas no Brasil e no exterior. 

Serviço:
"As Miniaturas"
Autor – Andréa Del Fuego
Editora – Companhia das Letras
Páginas – 134
Quanto – R$ 34 

Mãe e filho só não se esbarram na minha sala porque a regra não permite. Existe o manual do oneiro e o Edifício Midoro Filho espera que o sigamos para o bem da flora noturna. Muitos o seguem, a maioria, mas tem um pessoal inquieto, cismado com o fato do sonhante ficar naquele repouso, esperando que a sugestão de um machado mostre o corte, que uma ponte os atravesse, uma roda-gigante gire dentro de um aquário infantil. 

Não tô nem aí para a carreira, pouco importa obedecer o manual para que eu seja o funcionário do mês, tenha fotografia no café e, mais adiante, chefe do Edifício. O que mais gosto está nesse andar, na minha mesa, na minha gaveta, nessa mãe e filho incapazes de sonhar sem minha ajuda. 

A mãe me agrada por dois motivos, ela é rápida e me adora. O filho é cativante porque é ela de outro jeito, mas falta vocabulário para traçar a própria trajetória. Uma coisa é você sugerir objetos e alguém buscá-lo como se lembrasse de uma palavra. Outra é sugerir objetos para quem não sabe pensá-los, das dimensões cabíveis. Com ele preciso detalhar, mas é fácil e me impressiona o seu rosto, ele nunca expressa o sonho que está vivendo. Não sei o ponto em que está, em que estática, se em ruído ou imagem definida. Vou levando o moço para onde quero com sua total anuência. 

(Fragmento de "As Miniaturas" de Andréa Del Fuego)


FOLHA WEB